A gente não se lembra de como veio parar aqui. Por mais que a gente se esforce, não surge nenhuma lembrança do nosso primeiro dia de vida. De repente, a gente percebe que é uma pessoa e ainda assim não entende direito o que isso significa. Então, só nos resta acreditar nos mais velhos e repetir o que eles fazem. Nossa identidade mais primitiva depende dos outros pra se firmar no espaço e no tempo. Talvez esse seja nosso primeiro contato com uma característica fundamental da nossa espécie: a tradição.
Descobrimos quem fomos um dia e tudo o mais que existiu antes de nós pela transmissão do conhecimento. Foi assim que os pequenos grupos sobreviveram na pré-história, sempre seguindo as orientações de alguém que já sabia o que tinha que ser feito. Sem se arriscar tanto, as estatísticas eram favoráveis aos obedientes, que morriam menos e podiam passar seus genes adiante, e desfavoráveis aos curiosos, que morriam mais. Resultado: mais obedientes, menos líderes, mais crédulos, menos questionadores.

Pois bem. Guarde esse traço evolutivo aí no seu HD.

Em termos de organização social, com a expansão dos agrupamentos, as regras dos caciques evoluíram para códigos elaborados de conduta, desde o de Hamurabi até a Constituição Federal. Não há grandes nações sem legislação elaborada e costumes fortes. Economia, industrialização, educação, segurança e saúde dependem disso. A partir desses ditames morais, indivíduos de uma sociedade nascem, crescem, se reproduzem e morrem sendo obrigados a andar na linha que outros já traçaram.
Anota aí essa característica social.

Já na esfera psicológica, como dito, passamos a formular nosso próprio eu ainda na infância, observando e reproduzindo comportamentos alheios. Perceba o tamanho do desespero e a sinceridade genuína no choro de um bebê. Ele ainda não é capaz de perceber que deixou de ser a mãe. Não há distinção entre o eu e toda a confusão do mundo (por isso bebês seguram nosso dedo e colocam insetos na boca). Não há percepção do tempo nem do espaço devido à falta de cognição e órgãos sensoriais desenvolvidos. O ontem e o amanhã não têm o menor sentido (vide o desejo de assistir Frozen 25 vezes por dia). Lá pelos 6 anos, acontece uma revolução extraordinária no cérebro infantil, quando surge certa autonomia e capacidade de planejamento para ter suas vontades atendidas. Mas ainda assim, até chegar à maturação neural “completa” (24+), continuará buscando referências externas para desenvolver sua personalidade. Segundo a psicanálise, esses referenciais gerarão inúmeros conflitos durante toda a vida, já que nossas estruturas psíquicas permanecerão na dependência das experiências da infância até a morte (“uma criança não é um pequeno adulto, mas todo adulto é uma criança grande”). Enquanto a gente se desenvolve, criamos nossas opiniões, fazemos julgamentos e armazenamos algum conhecimento do mundo por meio de um mecanismo psíquico dividido em três níveis: primeiro, por atribuição (“tal coisa é de tal jeito porque tem os atributos x, y e z”); segundo, por categorização (“… porque faz parte da categoria de coisas x”); e por último, por conceituação (“… porque eu sei que é assim”). Esse mecanismo entra em prática condicionado a vários vieses cognitivos que são excelentes em dar voadora no consciente e abraçar carinhosamente o inconsciente. Destaco o viés de retrospectiva: a gente tende a assumir como verdade o que havia previsto (pela crença) e se concretizou e descartar/esquecer o que havia previsto mas não rolou.

Traços psíquicos anotados?

Por fim, biologicamente falando, nosso cérebro é bom em muitas coisas, mas excelente em uma só: economizar energia. Apesar de possuir de 2 a 3% o peso do corpo, esse único órgão consome 25% dos recursos energéticos quando estamos em repouso. O humano moderno carrega um cérebro que evoluiu em um ambiente selvagem, no qual era necessário passar a maior parte do tempo descansando para executar comportamentos fundamentais: prover alimento, comer, acasalar, lutar e fugir. Assim, qualquer novidade no ambiente que exigisse esforço extra tinha de ser inicialmente rejeitada, já que a prioridade era manter as reservas de energia em dia. Esse aparato biológico dá suporte para que todas as características subjetivas já mencionadas entrem em vigor com a devida falta de equilíbrio que o mundo contemporâneo caótico permite. O cérebro não nos permite fazer análises eficientes de dados complexos com esforço atencional regular. Ele busca o menor caminho pra não gastar combustível e isso implica evocar memória distorcida sob a interferência do momento corporal atual. Objetivamente, isso significa fazer julgamento na dependência da sua homeostase (o que tem circulando no seu sangue neste momento, o que está no seu estômago, a qualidade do ar que você respira, quantas toxinas não foram eliminadas na sua urina, bla bla bla bla). Cada vez que se evoca uma memória, menos ela reflete a realidade vivenciada. Somos biologicamente levados a ter preferências por mais do mesmo com prevalência de experiências que reforçam nossos hábitos (do consumo de fake news ao tabagismo).

Vamo fechá logo esse novo volume da Barsa?

O que quero trazer com essas informações e reflexões, querides, é que estamos condicionados a acreditar nos líderes e nas nossas próprias crenças para reforçar nossas identidades e manter um saldo positivo de humanos na Terra. Essa é a regra. Sempre haverá ditadores e grandes exércitos que marcham rumo à morte em nome de uma ou outra ideologia. No contexto atual, pedir para as pessoas usar máscara e tomar vacina é dar murro em ponta de faca. Como tentei demonstrar, existem causas evolutivas, sociais, psíquicas e biológicas que nos levam a ser quem somos. Desdenhar contra a vacina não tem a ver com China, eficácia, Doria ou Bolsonárveres. Tem a ver com 2 milhões de anos do gênero Homo, com distribuição de renda, com nossa genética e disposição das sinapses. Nossa interação com o mundo é orientada a preconceito graças a incontáveis fatores. Por mais que existam pessoas evoluídas intelectual e moralmente, a maioria continuará sendo mais ou menos. Multiplique os condicionantes por 8 bilhões e temos uma humanidade que deu errado. Isso mesmo, deu ruim. Nesse sistema capitalista baseado em consumismo e desigualdade social, não vai rolar. Provavelmente, se voltássemos a habitar a zona rural ou as florestas, também não rolaria. Outras espécies humanas que coabitaram o planeta com a gente já rodou. Falta a nossa.
Então, começo o ano deixando essa mensagem positiva para todes: lascou! Quem é um pouquinho mais esperto e tem algum condicionamento físico que corra para as montanhas. Caso contrário, por favor, mantenha distância.

Foto: East Side Gallery, 2019 (artista desconhecido)